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Anarquia Relacional: o que é e quais os efeitos jurídicos no Brasil

  • Foto do escritor: Bravo Godoy Perroni Advocacia
    Bravo Godoy Perroni Advocacia
  • 4 de ago.
  • 4 min de leitura

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Nos últimos anos, diferentes formas de se relacionar afetivamente ganharam visibilidade em diversos países. Termos como não-monogamia ética, poliamor, relações abertas e anarquia relacional passaram a circular com mais frequência em redes sociais, publicações e debates acadêmicos. Embora esses conceitos não sejam novos, há um interesse crescente em compreender como tais modelos dialogam com o ordenamento jurídico vigente — especialmente no Brasil, onde o Direito das Famílias e das Sucessões ainda se baseia em estruturas conjugais tradicionais.


O que é anarquia relacional?

A anarquia relacional é um modelo de vínculo afetivo que rejeita a hierarquização entre relações interpessoais e se opõe à institucionalização automática de vínculos afetivos. Surgida na Suécia no início dos anos 2000, a expressão foi popularizada por Andie Nordgren, autora de um manifesto que propõe a desconstrução das normas convencionais que regulam o amor romântico.


Ao contrário de modelos como o namoro, o casamento ou a união estável — que costumam seguir uma progressão predefinida e estão atrelados a expectativas de exclusividade e prioridade —, a anarquia relacional parte do princípio de que cada relação deve ser construída livremente, com acordos próprios entre os envolvidos, sem pressupostos automáticos quanto à sua estrutura, finalidade ou importância.


Nesse modelo, também não se pressupõe que relações afetivas e sexuais devam ser mais relevantes do que amizades, vínculos familiares ou outros tipos de laços. O foco está na liberdade, na negociação contínua e na autonomia das partes.


Esse modelo é praticado no Brasil?

Embora ainda adotado por uma minoria, há registros crescentes de interesse e vivência da anarquia relacional no Brasil. Grupos sobre não-monogamia, páginas especializadas, eventos temáticos e debates acadêmicos vêm abordando o tema, indicando um processo de disseminação do conceito no país.


Estudos recentes apontam o Brasil como um dos países com maior volume de buscas relacionadas à não-monogamia no mundo, com destaque para as gerações mais jovens. Além disso, discussões sobre “famílias plurais” e “relações não institucionalizadas” já estão presentes no debate jurídico contemporâneo, ainda que de forma incipiente.


O que diz o Direito brasileiro sobre esses vínculos?

O ordenamento jurídico brasileiro reconhece como entidades familiares:


  • O casamento civil, formalizado perante o Estado;

  • A união estável, prevista no art. 1.723 do Código Civil, caracterizada pela convivência pública, contínua e duradoura entre duas pessoas, com o objetivo de constituir família.


Ambos os modelos implicam efeitos jurídicos específicos: regime de bens, dever de lealdade, direito sucessório, alimentos, entre outros.


Já os vínculos afetivos mantidos nos moldes da anarquia relacional frequentemente não se encaixam nos critérios exigidos para o reconhecimento da união estável, especialmente pela ausência do chamado animus familiae — a intenção de constituir uma família nos moldes jurídicos tradicionais. Como consequência, essas relações não produzem efeitos jurídicos automáticos no campo familiar e sucessório.


Em muitos casos, tais vínculos se aproximam do que o Superior Tribunal de Justiça já classificou como "namoro qualificado": relações públicas, duradouras, até mesmo com coabitação, mas que não demonstram a intenção mútua de constituir uma entidade familiar.


Os riscos da ausência de definição jurídica

Apesar da proposta filosófica da anarquia relacional, do ponto de vista jurídico, o silêncio das partes sobre a natureza de sua relação pode gerar incertezas. O Direito das Famílias trabalha com presunções baseadas em fatos: convivência pública, duradoura e estável pode ser interpretada como união estável, mesmo que não haja intenção expressa das partes nesse sentido.


Em casos de término, falecimento ou litígio, a ausência de acordos formais pode resultar em disputas sobre o status jurídico da relação. Por exemplo, uma das partes pode pleitear reconhecimento de união estável com efeitos patrimoniais, enquanto a outra alega que se tratava apenas de um namoro sem intenção familiar. Nessas situações, quem decide sobre a qualificação do vínculo é o Judiciário — e, na falta de documento claro em sentido contrário, o Estado presume e impõe as regras jurídicas próprias da união estável.


Esse risco não se limita a disputas entre os próprios parceiros. Familiares ou terceiros interessados (como herdeiros legais) também podem questionar a natureza da relação, especialmente em casos envolvendo herança ou partilha de bens.


Portanto, para adeptos da anarquia relacional que desejam preservar sua autonomia e evitar a institucionalização jurídica indesejada, prever previamente os limites da relação por meio de instrumentos formais pode ser uma medida de segurança.


Um paradoxo entre filosofia e prática jurídica

Esse caminho preventivo, no entanto, revela um paradoxo importante. A proposta da anarquia relacional é justamente evitar a institucionalização das relações afetivas — ou seja, não classificá-las, não rotulá-las e não submetê-las às estruturas formais impostas pelo Estado ou pela sociedade.


Entretanto, a forma mais segura de evitar os efeitos legais de uma união estável é justamente firmar um contrato de namoro — instrumento jurídico pelo qual as partes declaram expressamente que, apesar de manterem um vínculo afetivo, não possuem intenção de constituir família, afastando, assim, os efeitos patrimoniais e sucessórios da união estável.


Trata-se de uma institucionalização negativa: o contrato não cria obrigações típicas de um vínculo familiar, mas delimita juridicamente o que aquela relação não é. Mesmo rejeitando a união estável, o contrato atua dentro da lógica jurídica — e, por isso, insere o relacionamento em moldes institucionais, ainda que como forma de negação.


Esse paradoxo pode levar a diferentes posturas entre adeptos da anarquia relacional: os que preferem não assinar qualquer instrumento jurídico, mantendo a coerência com os princípios do movimento, mesmo diante dos riscos legais. Outro pensamento, mais pragmático, é recorrer a contratos e documentos como forma de proteção patrimonial e sucessória, aceitando algum grau de formalização para evitar litígios futuros.


Conclusão

A  anarquia relacional, enquanto proposta de estruturação de vínculos afetivos fora dos modelos tradicionais, levanta discussões relevantes no campo do Direito das Famílias e das Sucessões. Ainda que esse modelo não encontre previsão normativa específica no ordenamento jurídico brasileiro, suas implicações práticas podem ser significativas — sobretudo no que diz respeito à configuração ou não de união estável, à partilha de bens e aos direitos sucessórios.


Diante da possibilidade de que a ausência de manifestação expressa das partes resulte na aplicação de presunções legais — como a configuração de união estável com efeitos patrimoniais e familiares —, a temática convida à reflexão sobre a importância da clareza e da definição jurídica dos vínculos afetivos, sempre respeitados os limites da autonomia privada.


A matéria segue em constante evolução, tanto no plano social quanto no campo jurídico, sendo objeto de debates doutrinários e decisões judiciais pontuais. O acompanhamento atento desses desdobramentos é fundamental para a compreensão crítica das novas formas de organização familiar e de seus impactos no sistema jurídico vigente.




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