STJ valida doação disfarçada de empréstimo e reforça os limites entre forma e intenção no Direito das Famílias
- Bravo Godoy Perroni Advocacia

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A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reafirmou, em decisão relatada pela ministra Nancy Andrighi, que a ausência de escritura pública ou contrato particular não invalida uma doação disfarçada de empréstimo, desde que haja provas de que a transferência patrimonial foi feita por liberalidade, ou seja, sem expectativa de reembolso.
O entendimento, publicado em 17 de outubro de 2025, tem implicações diretas no Direito das Família e Sucessões, pois evidencia que a verdadeira intenção das partes (animus donandi) prevalece sobre as formalidades, principalmente quando estas são usadas para disfarçar a natureza do negócio jurídico.
O caso: doação sob aparência de empréstimo entre cônjuges
Durante o casamento, celebrado sob o regime da separação de bens, um homem transferiu à esposa o valor necessário para a compra de uma fazenda.Anos depois, já divorciados, ele ajuizou ação de cobrança alegando que o montante havia sido emprestado, e não doado, buscando reaver parte do valor com a venda posterior do imóvel pela ex-esposa.
O Tribunal de Justiça de São Paulo rejeitou a tese de empréstimo e reconheceu que houve doação dissimulada, pois os documentos contábeis e declarações de Imposto de Renda do casal, elaborados sob orientação do ex-marido, revelavam que a operação foi estruturada para parecer um empréstimo apenas formalmente.
O STJ confirmou a decisão.
A intenção de doar supera a forma escolhida
Em seu voto, a ministra Nancy Andrighi explicou que, nas hipóteses de simulação relativa (art. 167 do Código Civil), o que se esconde por trás da aparência é o verdadeiro negócio jurídico.
Assim, quando as partes registram um “empréstimo” para ocultar uma doação, a validade do ato deve ser analisada segundo a substância da vontade real, e não apenas pela forma.
Normalmente, o art. 541 do Código Civil exige que a doação seja formalizada por escritura pública ou instrumento particular, especialmente quando envolve bens imóveis.
Mas o STJ entendeu que essa exigência não pode beneficiar quem tentou mascarar o negócio jurídico.
Em outras palavras: se o doador agiu de má-fé ao disfarçar a doação, não pode depois alegar a falta de forma para invalidar o ato e reaver o bem.
Consequências práticas no planejamento patrimonial e sucessório
Embora o caso envolva um casal divorciado, o precedente alcança todas as relações familiares em que bens ou valores são transferidos entre parentes, especialmente quando não há documentação formal que reflita a real intenção das partes.
No planejamento sucessório, essa decisão serve de alerta em três frentes:
Risco de simulações nas transferências de bens:É comum que pais, cônjuges ou companheiros transfiram patrimônio sob rótulo de “empréstimo”, para postergar impostos ou evitar conflito entre herdeiros. Essa prática, contudo, pode ser reconhecida como doação, com todos os efeitos legais — inclusive repercussão na legítima (art. 544 do Código Civil).
Impacto nas partilhas e heranças:Caso a doação disfarçada beneficie um herdeiro, pode ser sujeita à colação (art. 2.002 do Código Civil), ou até reduzida se ultrapassar a parte disponível.O precedente indica que o Judiciário privilegia a intenção real, e não a formalidade — o que significa que a ausência de escritura não impede o reconhecimento da doação, desde que comprovada a liberalidade.
Prevenção e transparência nos instrumentos de doação:Em contextos familiares, o ideal é que toda transferência patrimonial seja formalizada de forma clara e estratégica — seja por escritura pública de doação, seja dentro de instrumentos sucessórios mais amplos, como testamentos, doações com reserva de usufruto ou holdings familiares. Assim, evita-se o risco de litígios e interpretações contraditórias após o falecimento.
Boa-fé, transparência e coerência nas relações familiares
O voto da ministra Nancy Andrighi também reforça a boa-fé objetiva e a vedação ao comportamento contraditório (venire contra factum proprium). O doador que, de propósito, simula um empréstimo para escapar de formalidades, e depois tenta reverter o negócio, não pode invocar a própria torpeza para se beneficiar.
Em termos práticos, isso significa que a boa-fé e a verdade dos fatos prevalecem sobre a forma jurídica - especialmente nas relações familiares, em que as transferências patrimoniais envolvem não apenas aspectos financeiros, mas também afetivos.
Reflexão final
A decisão da Terceira Turma do STJ destaca um ponto relevante para o Direito das Famílias e Sucessões: nas relações patrimoniais entre pessoas próximas, a clareza na formalização dos atos é essencial para evitar dúvidas quanto à sua natureza jurídica.
Quando há indícios de que um empréstimo encobriu uma doação, o Poder Judiciário tende a investigar o conteúdo real do negócio, reconhecendo a intenção efetiva das partes como elemento determinante para a validade do ato.
O precedente demonstra que a falta de formalidade não anula automaticamente a liberalidade comprovada, mas evidencia a importância de estruturar juridicamente as transferências de bens de modo adequado às exigências legais.
Em contextos familiares ou sucessórios, a formalização correta de doações e transferências patrimoniais continua sendo a melhor forma de assegurar segurança jurídica e evitar litígios futuros sobre a origem ou a natureza dos bens.
Fonte: STJ Notícias



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