Testamento e legítima: o que diz a lei, o que decidiu o STJ e o que pode mudar com a reforma do Código Civil
- Bravo Godoy Perroni Advocacia
- 2 de jun.
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Atualizado: 5 de jun.

Um dos temas mais debatidos no Direito das Sucessões diz respeito ao equilíbrio entre autonomia da vontade do testador e a proteção da legítima dos herdeiros necessários. A discussão gira especialmente em torno do artigo 1.857 do Código Civil, que, em seu §1º, determina que "a legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento".
O entendimento literal desse dispositivo tem levado muitos operadores do direito a considerar inválidas disposições testamentárias que mencionem o patrimônio como um todo, mesmo que a legítima seja respeitada. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) esclareceu essa controvérsia de forma relevante no julgamento do Recurso Especial nº 2.039.541/SP. Além disso, o Projeto de Reforma do Código Civil, em tramitação sob o PL nº 4/2025, propõe uma redação diferente para o mesmo artigo, com impactos relevantes.
O que diz a lei hoje (art. 1.857 do Código Civil)
A redação atual do artigo 1.857 do Código Civil prevê que:
“Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.”“§ 1º A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.”
O §1º tem gerado dúvidas quanto à possibilidade de o testador fazer referência à legítima no corpo do testamento. Muitos tribunais passaram a entender que qualquer menção à totalidade do patrimônio poderia implicar afronta ao direito dos herdeiros necessários, mesmo quando esses direitos estivessem respeitados.
O que decidiu o STJ (REsp 2.039.541/SP)
Em junho de 2023, a Terceira Turma do STJ julgou o Recurso Especial 2.039.541/SP e fixou entendimento de grande relevância: é válida a disposição testamentária que menciona todo o patrimônio do testador, desde que a legítima seja integralmente respeitada.
O caso envolvia um testamento no qual o autor da herança declarava expressamente que todo o seu patrimônio deveria ser partilhado entre os três filhos (herdeiros necessários), com 25% para cada, e cinco sobrinhos (herdeiros testamentários), com 5% para cada um. Isso totalizava 75% do patrimônio aos filhos e 25% aos sobrinhos.
O tribunal estadual entendeu que a disposição seria inválida, pois o testamento parecia dispor de 100% do acervo, e, assim, decidiu limitar a partilha à metade disponível da herança.
O STJ, no entanto, reformou essa decisão. O voto da ministra Nancy Andrighi, seguido por unanimidade, afirmou que:
A legítima pode ser mencionada no testamento, desde que não seja violada.
O testador pode fazer referência à totalidade do patrimônio como unidade de cálculo, desde que os herdeiros necessários recebam, no mínimo, a metade da herança, conforme manda a lei.
O artigo 1.857, §1º, deve ser interpretado de forma sistemática, e não literal, levando em conta os princípios da autonomia da vontade e da função do testamento como instrumento de organização patrimonial pós-morte.
Assim, o STJ reconheceu a validade do testamento e determinou que os percentuais fixados pelo testador fossem aplicados sobre o patrimônio total, pois a legítima foi integralmente observada.
O que diz o Projeto de Reforma do Código Civil (PL nº 4/2025)
O Projeto de Lei nº 4/2025, que trata da proposta de reforma do Código Civil, traz alterações pontuais e importantes ao artigo 1.857. Segundo o anteprojeto apresentado pela Comissão de Juristas do Senado, a redação sugerida para o §1º é a seguinte:
“A legítima dos herdeiros necessários deve ser resguardada, e poderá ser mencionada no testamento.”
Com isso, a proposta corrige o texto atual que gera interpretação restritiva, reconhecendo expressamente a possibilidade de a legítima ser mencionada no testamento. A nova redação estaria em sintonia com o entendimento do STJ e contribuiria para afastar controvérsias como a que motivou o Recurso Especial 2.039.541.
O que muda na prática
A consolidação desse entendimento, tanto pelo STJ quanto pelo texto proposto na reforma, traz maior segurança jurídica para quem deseja organizar sua sucessão por meio de testamento. Entre os principais impactos, destacam-se:
O testador poderá planejar sua sucessão de forma completa, mencionando inclusive a legítima, sem risco de invalidar o testamento por esse motivo.
A liberdade de dispor dentro dos limites legais será respeitada com mais clareza, valorizando a autonomia privada.
A jurisprudência e a futura legislação caminham no sentido de garantir que a forma como o testamento é redigido não comprometa sua eficácia, desde que o conteúdo respeite os direitos dos herdeiros necessários.
Conclusão
O julgamento do STJ e o texto da proposta de reforma convergem para uma interpretação mais moderna e funcional do Direito das Sucessões. Ao permitir que o testador mencione a totalidade de seu patrimônio no testamento, inclusive a legítima, desde que respeitada sua destinação legal, o ordenamento jurídico passa a privilegiar a vontade de quem dispõe, sem comprometer os direitos de quem herda por força da lei.
Esse equilíbrio entre liberdade e proteção é um dos pilares centrais da sucessão testamentária no Brasil — e, com esses avanços, tende a se tornar mais claro, seguro e eficaz.
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