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3 previsões pouco usuais sobre como o mercado jurídico no Brasil mudará profundamente em 2030


Afora a pesquisa de jurisprudência online, o e-mail e o processador de texto, pouco mudou na prática jurídica para a maior parte dos profissionais do direito desde a introdução da Internet comercial em 1995. Até na exposição midiática nós juristas somos old school – é uma rede de televisão estatal o meio mais influente de comunicação para a nossa classe (no Brasil, ao menos).


Todavia, a digitalização das informações jurídicas está entrando em uma nova etapa. Não é apenas a tecnologia jurídica, mas a cultura dos juristas que está em processo de transformação. Há dois anos, eu contava nos dedos as pessoas que – como eu – enxergavam como a digitalização das informações abria portas para novas formas de praticar direito. Hoje, juristas tratam com naturalidade o fato de uma inteligência artificial ser aplicada para exame de admissibilidade de recursos ao Supremo Tribunal Federal. Enfim, o direito se defronta com o joelho de uma curva exponencial. Primeiro devagar, depois súbita: assim como ocorreu em todas as outras áreas em que a digitalização tomou conta, a mudança não virá aos poucos. De um dia para o outro, o direito no Brasil será muito diferente do que vimos nos últimos 20 anos.


Tem muita gente boa falando do futuro da advocacia nesses tempos. É fácil achar listas sobre como a interação de direito e tecnologia irá afetar gestão de documentos, o mercado de correspondentes jurídicos, ou o julgamento de processos. Mas essas três previsões abaixo tratam de profundas mudanças no mercado jurídico do Brasil, e confesso não as ter visto dessa forma em lugar nenhum.


Previsão 1: Direito Processual irá se tornar obsoleto


Ao invés de estudar condições da ação, pressupostos processuais e requisitos de admissibilidade, o advogado de 2030 terá que estudar os algoritmos de apreciação de seus argumentos e o processo decisório de redes neurais. A habilidade do advogado com a adaptação de suas peças para processamento em machine learning provavelmente será tão relevante quanto SEO é hoje para profissionais de marketing. O domínio da tecnologia por advogados já é tão relevante que a ABA (a OAB dos EUA) considera isso um compromisso ético do advogado. Mas não é apenas a tecnologia que influenciará o direito processual. Os advogados de elite terão ainda que ser capazes de elaborar estratégias com base em data mining, avaliar padrões decisórios e de comportamento de juízes, e utilizar com propriedade conceitos de psicologia social e marketing.


O pragmatismo e a eficiência é que farão o Direito Processual cair em desuso. Plataformas de solução de conflitos baseadas em técnicas de gestão de projetos serão adotadas pelo Judiciário para desafogar processos e aumentar a qualidade. O domínio de conceitos como Kanban, Lean e Agile se tornarão mais importantes do que o domínio da velha tríade processual. Resolução de conflitos em muito menos tempo, e com as partes muito mais satisfeitas, isso atrairá juízes, promotores e advogados para outros modos de enxergar requisitos e etapas de processos judiciais. Filigranas processuais serão resolvidas pelas plataformas de processo eletrônico, e a diferenciação entre classes de recursos fará cada vez menos sentido. Por exemplo, assim como você não consegue efetuar uma TED fora do horário comercial dos bancos, o sistema de processo eletrônico irá impossibilitar o protocolo de recursos fora do prazo. A Justiça será mais ágil, juízes terão mais incentivos para decidir logo o mérito das causas, e o direito processual se tornará mais uma questão de arquitetura dos sistemas de processo eletrônico. Pouco-a-pouco, ninguém mais utilizará o Direito Processual, até o momento em que se tornará apenas uma peça de fetiche acadêmico para um conjunto saudoso de processualistas.


Previsão 2: regimes jurídicos transnacionais farão com que os profissionais jurídicos adotem a certificação internacional como principal forma de qualificação


Nos últimos anos, duas leis estrangeiras fizeram uma silenciosa revolução no mercado jurídico brasileiro. Elas se tornaram valiosa fonte de receita para escritórios de advocacia corporativa e criaram uma enorme demanda por qualificação jurídica. A primeira foi a FCPA – Foreign Corrupt Practices Act (conforme alterada em 1998), uma lei dos Estados Unidos que estabelece condutas que empresas americanas devem adotar contra a corrupção. A segunda foi a europeia GDPR – General Data Protection Regulation (de 2018), que traz um conjunto de regras e procedimentos para a proteção de dados pessoais no ambiente digital. Essas duas leis têm em comum uma característica peculiar, uma espécie de Toque de Midas regulatório. Ambas as leis tornam obrigatória sua aplicação para qualquer pessoa que interaja com uma pessoa sob a jurisdição da lei.


Se uma empresa americana faz negócios no Brasil, ela não apenas é obrigada a se portar conforme os parâmetros anticorrupção da FCPA, mas também é obrigada a exigir que qualquer pessoa com quem ela contrate no Brasil adote os mesmos parâmetros. Em outras palavras, se uma empresa brasileira é fornecedora de uma empresa americana no Brasil, a empresa brasileira está obrigada a seguir a FCPA. Isso deu origem a um dos produtos da moda no Direito brasileiro: o compliance. As implicações para o Brasil foram muito além de um novo e lucrativo ramo para os escritórios de advocacia. A Lei Anticorrupção brasileira é resultado direto da FCPA. A Lava-Jato, para o bem e para o mal, também.


Com a GDPR, o impacto institucional foi ainda maior. Essa lei é de aplicação obrigatória para qualquer país que queira hospedar dados de cidadãos da União Europeia. Ela exige não apenas o cumprimento das regras de proteção de dados da União Europeia, mas também que no país haja uma agência reguladora de proteção de dados pessoais. Ela também exige que empresas tenham um profissional específico cuja responsabilidade é ser uma espécie de auditor do cumprimento da lei. Se um país não cumpre a GDPR, ele se torna uma espécie de leproso regulatório: qualquer empresa que tratar dados nesse país não poderá operar na União Europeia. Não foi à toa que a brasileira Lei Geral de Proteção de Dados teve rápida tramitação, e que o nosso país em breve verá instalada a Autoridade Nacional de Proteção de Dados.


O exemplo da FCPA e da GDPR será inevitavelmente seguido por outras leis. Em um mundo digital globalizado, problemas jurídicos são globais. Apenas a aplicação transnacional de regimes jurídicos pode resolver esses problemas. A solução tradicional seria a negociação de tratados internacionais e a internalização desses acordos pelas assembleias legislativas nacionais. FCPA e GDPR, porém, acharam um mecanismo engenhoso para impor os regimes jurídicos de suas nações de origem a outros países. Prevejo que, para potências como EUA e UE, será difícil resistir à tentação de implementar soluções semelhantes para outras questões transnacionais como meio-ambiente, concorrência, propriedade intelectual...


Pois bem, FCPA e GDPR tiveram o interessante efeito de multiplicar entre juristas brasileiros a certificação por entidades de renome internacional. De uma hora para a outra, meus contatos no LinkedIn passaram a ter seus nomes seguidos de sopas de letrinhas como CCEP-I ou CIPP-E. Esse tipo de certificação tem inúmeras vantagens para o mercado jurídico profissional. Por se tratarem de certificações que dizem respeito a regimes jurídicos transnacionais, esses certificados abrem portas para o mercado internacional. Além disso, dizem respeito ao conhecimento técnico de normas e melhores práticas, algo muito mais relevante para o mercado profissional do que o conhecimento acadêmico (o que não significa dizer que esse conhecimento não é importante). Finalmente, a certificação usualmente exige atualização periódica, o que faz com que profissionais certificados tenham que se manter a par da evolução de seus campos de expertise.


Embora a causa (imposição por EUA e UE de regimes transnacionais) traga sérios problemas de legitimidade democrática, o efeito (a busca por certificação) é algo que vejo com bons olhos. Não é, nem deveria ser, função da pós-graduação strictu sensu a formação de profissionais para o mercado jurídico – exceto, claro, o mercado de pesquisadores e professores. Mestrados e doutorados no Brasil cumprem uma função que não deveriam ter, e acabam deixando a desejar na construção de pensamento jurídico crítico de qualidade. A busca por certificação, por isso, irá contribuir para elevar a qualidade do ensino jurídico de pós-graduação.


Previsão 3: o direito estará em tudo, mas não o profissional jurídico


Litígios são caros e ineficientes. Ao final de um processo judicial, nenhuma das partes envolvidas escolheria ganhar a causa ao invés de nunca ter tido o litígio. Por esse motivo, a atuação jurídica preventiva está ganhando cada vez mais destaque. Em setores regulados como mercados financeiros ou serviços de saúde, essa atuação já é uma inegável realidade na atuação dos profissionais de compliance. Mas mesmo em outros setores, diretores jurídicos hoje enxergam sua função como a de gestores de risco jurídico em prol dos valores da companhia, ao invés de gerentes de resolução de conflitos como há alguns anos era comum. Até mesmo em áreas tradicionais como família e contratos, hoje é exigido do profissional jurídico de ponta ao menos um bom conhecimento operacional de técnicas de negociação e mediação. Nas palavras de Richard Susskind, o direito tratará de construir cercas no topo do penhasco, ao invés de fornecer ambulâncias aguardando ladeira abaixo.


Em até dez anos, porém, essa atuação preventiva será bem diferente. O direito já virá embarcado em produtos e serviços. Litígios serão prevenidos por design. Em transações financeiras, por exemplo, isso já é uma realidade. O dinheiro em sua conta bancária é digital, e para movimentá-lo você tem a sua disposição inúmeras facilidades e serviços. Você não consegue movimentar sua conta bancária, por exemplo, sem pagar IOF. Isso não ocorre com o dinheiro da sua carteira. As regras estão já inseridas no serviço. Você não precisa de um advogado tributarista, nem de um contador. Além disso, limites diários de transações limitam o seu prejuízo em caso de um ataque a sua conta (seja um ataque digital por um hacker, seja um ataque físico por um assaltante). O limite ao seu prejuízo é também um gerenciamento do risco jurídico do banco, que tem obrigação legal de proteger adequadamente os valores depositados em conta. Esse tipo de redução de risco jurídico por design seria muito mais difícil se o dinheiro não fosse digital. Com cédulas, não dá para programar limites e regras de como serão gastos valores monetários. Com dinheiro digital, isso se torna possível.


Essa atuação jurídica preventiva por design será ubíqua até o fim da próxima década. E o profissional jurídico terá que dividir espaço com diversos outros profissionais. No design das aplicações bancárias que usei como exemplo, não foi um contrato bem redigido pela área jurídica do banco que impediu que você faça uma transação arriscada pelo banco. Esse foi o trabalho de um time de desenvolvedores de software, atuando para implementar a interface feita por um designer, que por sua vez seguiu as prioridades definidas por um gerente de produto, dentro de um programa acompanhado por um gestor de projetos, em que o jurídico forneceu apenas os requisitos regulatórios aplicáveis. Não obstante, a solução final reduz risco jurídico, evita exposição a processos judiciais e comprova a conformidade com as normas regulatórias aplicáveis. Com mais eficiência do que o contrato.


A Internet das Coisas somada à digitalização de produtos e serviços irão tornar tudo programável. Soluções baseadas em blockchains/DLTs parecem especialmente promissoras. Será uma era de contratos inteligentes, propriedade programável, regulação algorítmica (falarei mais sobre esses temas em artigos futuros). Isso reduzirá o papel de advogados especializados em litígios, mas criará diversas oportunidades para advogados que dominem design thinking e saibam trabalhar em equipes multidisciplinares.


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