O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) criou um laboratório de inteligência artificial para coordenar a automação dos tribunais em todo o país
Em tribunais e escritórios de advocacia, robôs assumem tarefas repetitivas dos processos e movimentam ações paradas há anos. A questão, porém, gera polêmica sobre qual seria o real papel dos juristas
O sistema judiciário brasileiro tem mais de 80 milhões de processos aguardando solução, de acordo com o levantamento Justiça em Números, de 2018, do Conselho Nacional de Justiça. É bastante. Mas o volume poderia ser ainda maior não fossem os robôs.
A automação tem reduzido o avanço da quantidade de processos no País. Quer ver? De 2015 para 2016, o sistema judicial recebeu 3,8% mais processos. Já entre 2016 e 2017, o crescimento foi de apenas 0,3%, devido, em grande parte, à adoção de robôs (que podem ser feitos com poucas linhas de código) nos tribunais e escritórios de advocacia.
O uso de robôs para agilizar a justiça brasileira é tão sério que até o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) organizou um laboratório focado em desenvolver tecnologia para auxiliar os tribunais de justiça. O objetivo do Laboratório de Inteligência Artificial do CNJ é reduzir o tempo de tramitação detectando quais tarefas podem ser feitas sem a interferência contínua de servidores, de acordo com o coordenador do projeto, Bráulio Gusmão.
“O judiciário tem uma massa de processos muito grande. Claro que para dar conta disso não é só tecnologia, tem que ser analisado como um todo. Há condições propícias para uso da inteligência artificial com apoio à decisão dos magistrados, indicando casos semelhantes, indicando jurisprudência. A nossa expectativa é melhorar o tempo de tramitação”, explica.
Uma das possibilidades é o uso da automação em processos de execução fiscal. Segundo a juíza auxiliar da presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo, Ana Rita Nery, esse tipo de processo possui características próprias que permitem a automação.
“O desenvolvimento da atividade é feita por um funcionário, mas a repetição da atividade é feita por um robô. O ciclo de vida das execuções fiscais é extremamente repetitivo e muito padronizado do ponto de vista legal e do ponto de vista do curto fluxo de vida”, explica.
As Varas de Execuções Fiscais Estaduais de São Paulo já começaram a testar robôs na área. O primeiro projeto piloto ocorreu entre julho e dezembro de 2018 nas 1ª e 2ª Varas da Fazenda Pública de Guarulhos. Somente nesse período, foram feitas 781.845 análises e correções de processos. O número de processos caiu dois terços: foi de 587.368 para 226.116.
Após avaliar a segurança do procedimento, já existem projetos para expandir o uso do robô para outras varas de execução fiscal do estado. Campinas deverá ser a próxima a receber a automação, em agosto. As comarcas de Praia Grande e Guarujá também estão no calendário até o fim do ano. Já em 2020, a previsão é de implementar o sistema em Piracicaba, Sorocaba, São Vicente, Itaquaquecetuba, Itanhaém e Santos.
Outra unidade da federação que está contando com uma ajuda da automação na execução fiscal é o Rio Grande do Norte. O robô Poti acessa automaticamente a base de dados do BacenJud -sistema eletrônico do Banco Central voltado aos tribunais- e executa o bloqueio em contas.
Bruno Lacerda, juiz da 5ª Vara da Fazenda Pública do TJRN, explica que Poti funciona com base na inteligência artificial. “Esse sistema, além de fazer a automação, também se auto alimenta das informações no decorrer do tempo, vai aprendendo que determinados valores em determinadas contas não podem ser bloqueados, como salário”, explica.
Confira algumas das iniciativas em tribunais por todo o país:
TJRN O robô Poti foi criado entre 2017 e 2018 em parceria com alunos da pós-graduação da Tecnologia da Informação da UFRN e é utilizado para execução fiscal e penhora de bens. Enquanto um servidor consegue executar no máximo 300 ordens de bloqueio ao mês, Poti leva 35 segundos para efetuar um bloqueio. Ele atualiza o valor da ação de execução fiscal e transfere o montante bloqueado para as contas indicadas no processo. Se não existir dinheiro em conta, Poti pode ser programado para continuar monitorando as movimentações. Estão em desenvolvimento também Jerimum, que classifica e rotula processos; e Clara, que lê documentos, sugere tarefas e recomenda decisões.
TJPE A robô Elis faz a triagem de processos de execução fiscal, que são 53% de todas as ações em trâmite em Pernambuco. Ela confere dados da Certidão de Dívida Ativa (CDA) e se o processo prescreveu. Enquanto a triagem manual de 70 mil processos leva em média um ano e meio, Elis analisa pouco mais de 80 mil em 15 dias.
TJMG O robô Radar ajuda magistrados a localizarem casos repetitivos e agrupá-los, procurando por palavras-chave. A ideia é que, quando alguém recorrer da decisão em primeira instância, modelos de recursos de casos similares já estejam pré-definidos na segunda instância.
TJRO O robô Sinapses foi desenvolvido pelo Núcleo de Inteligência do Tribunal de Justiça de Rondônia (TJRO) e, no ar desde fevereiro de 2018, e faz uso de redes neurais. Ele possui um banco de dados de 44 mil despachos, sentenças e julgamentos, e seleciona decisões anteriores sobre o mesmo tema. Uma ferramenta chamada “gerador de texto” ajuda na elaboração de textos sugerindo palavras.
TRF da 2ª região – Rio de Janeiro O Centro de Integração Online, que recebe processos ligado a saúde, mostra possíveis soluções não-judiciais para as demandas, cadastradas por inteligência artificial. Se o usuário concordar com a solução proposta, o próprio aplicativo ou site repassa o contato para a outra parte envolvida no possível processo avaliar o que acha da conciliação. Em 2018 a economia de recursos ficou estimada entre 90 milhões e 200 milhões, já que 50 mil processos foram evitados e cada um tem custo médio de R$ 1,8 mil a R$ 4 mil.
STF Ainda não implementado, Vitor separa e classifica peças processuais e sugere ao magistrado passos do processo. Ele também auxilia na elaboração de sentenças sugerindo frases. O STF queda de 60% no tempo de trâmite das ações.
TSE O Tribunal Superior Eleitoral desenvolveu, em parceria com o Twitter, um robô que atende os eleitores por mensagem direta. Ele checa o número do título de eleitor, local de votação e pendências, entre outros serviços.
TCU
O Tribunal de Contas da União conta com um trio de robôs: Alice, Sofia e Mônica. Alice procura “erros” nos documentos dos desembargadores, como frases que não fazem sentido ou ausência de argumentos
Advogado x robô
Não são somente os tribunais que estão usando a tecnologia a seu favor. Há no mercado de escritórios de advocacia uma tendência de otimizar o serviço pelas lawtechs, empresas de tecnologia voltadas para o Direito. As empresas criam softwares com atribuições diversas, desde análise e jurimetria e resolução de conflitos online até as gestão de escritórios e departamentos jurídicos.
Segundo o diretor executivo da Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L), Daniel Marques, em 2017 havia vinte lawtechs associadas. Hoje, já são cerca de duzentas. “As lawtechs mais antigas eram focadas em pegar trechos de diários oficiais de forma automatizada. Hoje em dia, nós temos lawtechs para tudo. Temos, por exemplo, empresas focadas em análise de jurimetria, as que fazem uso de inteligência artificial. A gente não tinha isso há três, quatro anos. Agora está aumentando”, afirmou Daniel Marques.
O uso da tecnologia também tem impactado a formação de equipes de escritórios de advocacia e departamentos jurídicos. O coordenador do Centro de Ensino e Pesquisas em Inovação da FGV Direito (CEPI), Alexandre Pacheco, afirma que a tendência é que as equipes sejam cada vez mais multidisciplinares. “Esses profissionais que vêm do Direito têm que ter um conjunto de habilidades adicionais que é ‘como é que eu converso com os profissionais vindo de outras áreas’”, diz.
O especialista defende que a principal consequência da automação é a realocação de profissionais para fora dos processos burocráticos. “Se antes eu precisava de algumas pessoas para realizar tarefas repetitivas, com o uso das ferramentas de automação não é mais preciso, ou preciso de pessoas em uma intensidade menor”, explica.
Um exemplo de função dos robôs é a chamada predição. O sistema avalia decisões anteriores de determinado magistrado sobre um tema, e, a partir disso, o advogado decide se vale a pena ingressar com a ação ou partir direto para a conciliação.
Para Alexandre Pacheco, essas ferramentas vêm para auxiliar o meio jurídico. Uma das possibilidades seria auxiliar jovens advogados no exercício da função. “Se um departamento jurídico tem uma ferramenta de predição, eles vão ter uma forma mais objetiva de realizar uma avaliação e orientar seu cliente para dizer se vale ou não a pena entrar com uma ação. Como se fazia isso até então? Com base na experiência pessoal”, defende.
A questão, porém, gera polêmica no meio jurídico. Para o presidente da Comissão de Direito Digital da OAB São Paulo, Spencer Toth, a adoção de tecnologias que façam a chamada predição tomam prerrogativas da função dos advogados. “A única forma que a advocacia pode ser executada de forma adequada é através de uma análise comprometida, individualizada, atenciosa e cautelosa por parte de um advogado. Então, toda vez que a tecnologia afastar esse trato individualizado, essa tecnologia está errada”, defende.
Alexandre Pacheco discorda dessa visão. De acordo com o professor, o mercado não é majoritariamente representado pelos advogados que se debruçam sobre os casos do clientes de forma particular. “A ideia do profissional de extrema qualidade, que orienta muito bem seu cliente, que tem tempo para analisar o caso e as peculiaridades do caso, cada vez mais é uma ideia romantizada do que os advogados e advogadas fazem. Para quem está nessa situação de alto prestígio e que pode fazer seu próprio preço, é muito fácil dizer que as tecnologias vão alterar a prática de mercado”, afirma.
De acordo com o estudo O Futuro das Profissões Jurídicas, realizado pelo Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) da FGV, as inovações tecnológicas disponíveis no mercado são inalcançáveis para grande parte dos escritórios de advocacia, que cobram preços abaixo do ponto de equilíbrio do mercado para conseguirem manter os poucos clientes.
O estudo afirma que essas novidades estariam se concentrando em grandes escritórios de advocacia e em escritórios boutiques -denominação dada para empresas com poucos funcionários, mas com alto grau de especialização e prestígio.
“Esses escritórios têm projetos tecnológicos fortíssimos e muito bem estruturados. Mas, no final das contas, eles são os que menos precisariam disso porque conseguem estabelecer preço”, afirmou Alexandre Pacheco.
Para a juíza do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, Isabela Ferrari, a tecnologia cada vez mais presente no meio jurídico. “Quando a gente pensa em rotina judicial automatizada e olha para o panorama das cortes online, a gente vai perceber que são uma tendência mundial”, afirmou.
Ferrari ressalta ainda que o protagonismo dessas ferramentas chegou a tal ponto que em alguns países, como China, Cingapura, Estados Unidos, Canadá e em países europeus “todo o processo está sendo repensado a partir da tecnologia, o que é muito mais do que inseri-la para melhorar o processo já existente”.
Fonte: Estadāo
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