O plenário do CNJ respondeu na última sexta-feira, 31, consulta de uma servidora do Judiciário, aluna de curso de pós-graduação, assentando a possibilidade de pesquisadores acessarem processos em segredo de justiça que tramitam nas varas de Família.
A pesquisadora indagou se a dispensa do consentimento para o acesso às informações pessoais para fins de pesquisa científica acadêmica de mestrado, vedada a identificação da pessoa a que a informação se referir, realizada por servidor público legalmente autorizado, engloba processos que tramitam em segredo de justiça em Varas de Família.
A partir do voto do relator, o conselheiro Henrique Ávila, o plenário respondeu à consulta de forma positiva, entendendo que a legislação que protege o direito à intimidade autoriza o acesso a processos sigilosos que tratam sobre Direito de Família, desde que o pesquisador adote todas as precauções para preservar os dados obtidos e, principalmente, não forneça qualquer informação que permita identificar quem são as pessoas envolvidas nos processos consultados, sob pena de responsabilidade.
Ao Migalhas, o relator ponderou que “o objetivo é harmonizar o direito à intimidade das pessoas com o interesse público notório que caracteriza a atividade de acadêmicos e pesquisadores”.
Importância da pesquisa científica
No voto, Henrique Ávila recorda que o princípio da publicidade dos atos da Administração Pública reverbera no Estado-Juiz, e que a legislação constitucional e infraconstitucional prevê que os atos processuais são, em regra, públicos.
“O ciclo de inovação, que encontra seus fundamentos na pesquisa científica e no desenvolvimento tecnológico, é imprescindível condição para o progresso nacional. A importância das atividades científicas e tecnológicas é expressamente reconhecida pelo Estado brasileiro, a quem compete sua promoção e incentivo. Tal obrigação, aliás, foi acolhida em nosso ordenamento jurídico com dignidade constitucional.”
Destacando a relevância da pesquisa científica no âmbito do Judiciário, citando inclusive o Departamento de Pesquisas Judiciárias do próprio CNJ, o conselheiro asseverou:
“A importância da pesquisa para o progresso da ciência – em especial, no caso em análise, da ciência jurídica e suas correlatas – é o que lastreia o reconhecimento de que, de forma pontual e sob especialíssimas condições, o direito à intimidade das partes em processos relacionados a filiação e estado das pessoas pode ser mitigado.”
No entanto, disse Henrique Ávila, há de se impor “rigorosos encargos” para que seja franqueado o acesso de pesquisadores a autos sigilosos.
O acesso aos processos que tratam de Direito de Família para pesquisa científica deve atender aos seguintes requisitos: (i) interesse público ou geral vinculado na pesquisa; (ii) presença de instrumentos que garantam que não se poderá associar as informações publicadas a nenhum indivíduo; e (iii) certidão com informações sobre a pesquisa em todos os processos consultados, para permitir às partes e aos advogados a fiscalização do correto uso das informações.
“Para além da apreciação dos requisitos estabelecidos no [...] é função do magistrado estabelecer, no ato autorizativo, as condições e limites do acesso aos autos.”
Proteção de dados pessoais
Henrique Ávila analisou ainda a LGPD (lei 13.709/18) para situação análoga de proteção de dados. O conselheiro menciona que a lei permite o acesso a tais informações para a realização de estudos desde que se garanta, sempre que possível, a anonimização dos dados.
“Guardadas as necessárias distinções entre a hipótese de cabimento da supracitada norma e da Consulta ora em análise, a necessidade de anonimização das informações colhidas a partir do acesso dos autos é exigência que se impõe. O agente cujo objeto de pesquisa demanda a coleta de dados pessoais sensíveis, contidos em processos judiciais que correm sob sigilo de justiça, deve zelar por sua preservação.”
De acordo com o voto do conselheiro, cabe ao magistrado verificar, diante dos objetivos do estudo apresentado, se as medidas propostas pelo pesquisador são adequadas para garantir que não se possa vincular o resultado do trabalho a determinados autos ou partes litigantes.
“É de rigor o indeferimento do pedido caso as medidas de contingenciamento das informações sejam insuficientes para preservar as pessoas a quem se referem os dados colhidos.”
Por fim, afirmou Ávila, deve-se adotar providência para cientificar os agentes que atuam no processo de que as informações ali contidas foram acessadas e, eventualmente, utilizadas na realização de pesquisa científica.
“Caso seja deferido o acesso, o fato deve ser certificado nos autos para comunicar e advertir as partes e seus procuradores, desincumbindo-se a administração judiciária de seu dever de informação. Permite-se, desse modo, que a fiscalização do uso escorreito dos dados obtidos pelo pesquisador seja exercida também pelos agentes diretamente atingidos.”
A consulta da requerente foi, assim, respondida:
1. o acesso a processos sobre estado e filiação das pessoas, que, nos termos do art. 189, II, do Código de Processo Civil, tramitam em segredo de justiça, pode ser conferido para a realização de pesquisas científicas de evidente interesse público ou geral, vedada a identificação da pessoa a que a informação se referir, nos termos do art. 34, I, da Res. CNJ n. 215, de 2015;
2. compete ao magistrado, após assinatura de termo de responsabilidade pelo requerente e análise da evidência do interesse público ou geral veiculado na pesquisa e da anonimização dos dados, autorizar o acesso a processo(s) para as estritas finalidades e destinação apresentadas no pedido; e
3. o acesso para a realização de pesquisa científica será certificado em todos os autos consultados para ciência das partes e de seus procuradores.
O regimento interno do CNJ dispõe que questões decididas em Consulta, como a do caso concreto, vinculam o Poder Judiciário (art. 89, §2º - “A resposta à Consulta, quando proferida pela maioria do Plenário, tem caráter normativo geral”).
Processo: 0005282-19.2018.2.00.0000
Confira o acórdão.
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